Jornal do Peninha

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Água subterrânea: o recurso hídrico ameaçado pela poluição

Tema sustenta agenda da ONU em 2030

Ludymila Siqueira
As atividades humanas e a crescente expansão urbana têm provocado uma degradação na quantidade e qualidade das águas e, com isso, proporcionam um aumento na busca de fontes alternativas de recursos hídricos, dentre elas, as águas subterrâneas. Muito além do que os olhos podem ver, as reservas de água doce no mundo estão debaixo da terra e preenchem completamente os poros das rochas e dos sedimentos, constituindo os aquíferos. 

As águas subterrâneas sustentam diversos sistemas aquáticos como rios, lagos, mangues e pântanos. Elas são essenciais para a manutenção de florestas em regiões de clima tropical ou seco. De acordo com o relatório de recursos hídricos das Nações Unidas (ONU), publicado em 2022, 99% da água doce no mundo está no subsolo, sendo de extrema importância para a segurança hídrica mundial. 

Embora represente a quase totalidade, as águas subterrâneas muitas vezes são um recurso natural mal compreendido e, consequentemente, subvalorizado, mal gerido e até mesmo explorado em excesso. No entanto, frente aos desafios das mudanças climáticas que o mundo já experimenta, a boa conservação deste sistema de absorção, armazenamento e reposição de água, chamado de  infraestrutura hídrica, é fundamental. Com isso, o uso sustentável pode ser uma saída para aumentar a produção de água e atender uma demanda que, até 2030, deve crescer 1% todos os anos no mundo, de acordo com a ONU. 

Ainda de acordo com o relatório das Nações Unidas, as águas subterrâneas têm potencial de elevar o desenvolvimento social e econômico das regiões, ao  intensificar a agricultura com irrigação e abastecer cidades e indústrias. Porém, sem uma boa governança e fiscalização governamental, esse recurso não será infinito. Pela sua importância, os recursos hídricos subterrâneos são um dos temas que sustenta a Agenda de Desenvolvimento Sustentável da ONU para 2030.

Para entender um pouco mais sobre como as águas subterrâneas são formadas e sua importância para a humanidade, a Agência Nacional das Águas e Abastecimento (ANA) publicou um vídeo educativo. Veja abaixo: 

 
Águas subterrâneas no Brasil 

No Brasil, segundo a Associação Brasileira de Águas Subterrâneas (ABAS), os aquíferos alimentam os rios com cerca de 2.400 quilômetros cúbicos de água fresca por ano. O recurso nem sempre é acessível a tecnologias de perfuração, em razão da profundidade. No País, calcula-se uma reserva subterrânea de cerca de 112 mil km cúbicos de água.

Além disso, o território brasileiro possui dois dos maiores aquíferos do mundo: o Amazonas, com 162,5 mil quilômetros cúbicos de água armazenada, e o Guarani, que possui cerca de 37 mil quilômetros cúbicos e é formado por uma grande reserva abaixo do curso do rio Paraná, que se estende por países vizinhos como a Argentina, Uruguai e Paraguai.
 

O aquífero Guarani é uma das principais reservas de água doce do mundo (Foto: reprodução)
Em entrevista ao jornal A Redação, o engenheiro civil José Vicente Granato de Araújo explica que cerca de 36% dos municípios brasileiros são abastecidos exclusivamente por águas extraídas de poços profundos e 16% parcialmente. “Em termos de nação, apenas 17,7% da população brasileira é atendida pelas águas subterrâneas, o que corresponde a aproximadamente 1.660 milhões de metros cúbicos ao ano”, enfatiza.

José, que também é professor na Universidade Federal de Goiás (UFG), ressalta ainda que algumas cidades importantes como Ribeirão Preto (SP), Mossoró e Natal (RN); Maceió (AL), Região Metropolitana do Recife (PE) e Barreiras (BA), dependem integralmente ou parcialmente da água subterrânea para o abastecimento populacional.
 

A cidade de Ribeirão Preto (SP) é abastecida pela água do aquífero Guarani (Foto: reprodução)
 
No estado de Goiás, o sistema aquífero Guarani é caracterizado pela existência de dois sistemas de fluxos regionais de água subterrânea: porção oeste – onde o fluxo subterrâneo está direcionado das áreas de recarga, regiões de Mineiros e Jataí, para o lineamento do Rio Paraná; porção leste – fluxo subterrâneo controlado pelo lineamento do Rio Paranaíba. 

Saída para a crise hídrica que pode estar ameaçada pela poluição e falta de saneamento básico 

Queimadas, desmatamentos e uso de agrotóxicos são práticas que diminuem a capacidade do solo de absorver a água das chuvas, o que acaba por enfraquecer os reservatórios naturais subterrâneos, além de poluir a água estocada, que vai chegar aos rios e também é acessada por poços artesianos.
Entre as preocupações em relação à preservação das águas subterrâneas está a poluição agrícola, que generalizada pode se tornar uma fonte difusa, que geralmente inclui grandes quantidades de nitrato, pesticidas e outros agroquímicos. Estudos também mostram que áreas da mineração e indústria também precisam evoluir no tratamento da água utilizada, desde a eficiência e o maior reuso, até a diminuição da poluição de rios e lençóis freáticos. Uma vez poluída, fica praticamente impossível tratar a água subterrânea. 

Outro fator é ainda mais agravante: a falta de saneamento básico. Quase 35 milhões de pessoas no Brasil vivem sem água tratada e cerca de 100 milhões não têm acesso à coleta de esgoto. Este é o cenário, quase dois anos depois de entrar em vigor o Novo Marco Legal do Saneamento, sancionado na Lei 14.026 de 2020, quando os investimentos no setor atingiram R$ 13,7 bilhões, valor considerado insuficiente para que sejam cumpridas as metas da legislação atualizada.


(Foto: reprodução)
Somente 50% do volume de esgoto do país recebe tratamento, o que equivale a mais de 5,3 mil piscinas olímpicas de esgoto in natura sendo despejadas diariamente na natureza. Os municípios dos estados do Paraná, São Paulo e Minas Gerais ocupam as primeiras posições do ranking, liderado por Santos (SP). Em Goiás, por exemplo, do total de 6,9 milhões de habitantes, cerca de 648 mil, o que corresponde a 9,12%, vivem sem água tratada. Quando se fala de esgoto, o número de goianos sem saneamento sobe para 2 milhões, conforme dados do Instituto Água e Saneamento. 

A estimativa é que o subsolo do país recebe cerca de 4 bilhões de metros cúbicos de esgotos anualmente, tanto pela falta de redes quanto pelos vazamentos gerados por falta de manutenção. Os dados mostram que a falta de saneamento básico corresponde à fonte mais preocupante da degradação de aquíferos. Isso porque a ausência de redes de coleta e tratamento de esgotos faz com que haja o ininterrupto lançamento de esgotos em fossas sépticas, fossas negras e sumidouros, a céu aberto e em cursos de água superficiais.
Um estudo feito pelo Trata Brasil em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) mostra também que é clara a relação entre a quantidade de fossas e a contaminação por nitrato e microrganismos patogênicos. Em favelas e assentamentos irregulares, a incidência de doenças é mais preocupante, pois a água subterrânea retirada pelos poços escavados pode estar contaminada pelas próprias fossas instaladas ao seu redor.


(Foto: reprodução)
Por outro lado, o levantamento realiza cálculos comparativos a índices de saneamento. Estima-se que se toda a água subterrânea extraída fosse oferecida pelo preço médio oferecido pelas companhias públicas de água, a receita total chegaria a R$ 59 bilhões por ano. Além disso, considerando os custos envolvidos na perfuração, instalação e equipamentos de bombeamento dos 2,5 milhões de poços tubulares considerados, acumula-se um investimento de R$ 75 bilhões. O valor é equivalente a pouco mais de 6 anos de investimentos em água e esgotos no Brasil.

Para o professor da área ambiental José Vicente de Araújo, as águas subterrâneas têm se mostrado, ao longo dos anos, como uma importante fonte para o abastecimento, especialmente no contexto das crises hídricas. “Por não serem vistas pelas pessoas, as águas subterrâneas têm sido negligenciadas, mas precisamos ter a consciência que não podemos ficar sem elas. Em regiões de escassez hídrica ou ineficiência no serviço de água tratada, o morador é salvo pela água dos poços. O problema é que a falta de saneamento básico as coloca em risco. Além disso, há de se considerar também a contribuição dos vazamentos nas juntas das redes coletoras, e na falta de impermeabilização adequada em lagoas e tanques de tratamento de esgotos domésticos”, pontua.

Políticas públicas eficazes para a manutenção de águas subterrâneas no planeta e benefícios diretos à população com menor impacto ambiental

A legislação ambiental voltada à preservação da quantidade e qualidade dos recursos hídricos no Brasil tem evoluído em alguns Estados, estando ainda carente em outros. Os instrumentos de gestão têm se aprimorado, mas  ainda há falta de recursos humanos e financeiros para aplicação integral destas operações.
 

Poços clandestinos são ameaças reais aos aquíferos brasileiros (Foto: reprodução)
A ação dos comitês de bacias hidrográficas e hidrogeológicas, com a participação do poder público, das concessionárias e também da sociedade promovem a qualificação de membros e, quando integralmente ativos, com o apoio dos Ministérios Públicos estaduais, desempenham papéis importantes na efetiva gestão e alocação desses recursos. No entanto, para elevar os índices de atendimento do saneamento básico e alcançar as metas do Novo Marco Regulatório no prazo estabelecido por ele, o Brasil necessita ampliar as políticas públicas, disponibilizando recursos financeiros em condições subsidiadas.
O professor José Vicente de Araújo afirma que a receita advinda da cobrança das tarifas pelos operadores visa apenas a manutenção da operação, não sendo suficiente para executar obras de ampliação. “Como engenheiro sanitarista, vejo um cenário de incertezas sobre o futuro, pelo fato das regras impostas pelo Novo Marco Regulatório não estarem ainda totalmente regulamentadas. E também por não haver uma sinalização de fontes de investimentos com a prática de juros subsidiados para o setor”, descreve.

Para o profissional, a ação inicial de gestão das águas subterrâneas que o país precisa estabelecer para a preservação e abastecimento do recurso seria a divulgação efetiva para toda a sociedade e gestores sobre a função e importância econômica, social e ambiental deste recurso subterrâneo. “Na verdade, não existe distinção entre as chamadas “águas superficiais” e as “águas subterrâneas”. Elas são as mesmas. Pertencem ao mesmo ciclo hidrológico, se  apresentando a cada momento em uma de suas fases. E por estarem na subsuperfície e não serem vistas, muitas vezes não são valorizadas”, esclarece.
Outra medida seria executar uma força-tarefa para descobrir, cadastrar, diagnosticar, multar e regularizar ou coibir a extração das águas subterrâneas pelos poços clandestinos, que consistem em uma grande porcentagem dos existentes no país. Para que isso ocorra de forma efetiva, o órgão gestor precisa dispor de efetivo de pessoal permanente, técnico, qualificado e com remuneração compatível com a praticada no mercado. “Atualmente, esses órgãos constantemente perdem seus funcionários mais qualificados para a iniciativa privada”, enfatiza José.
Além disso, seria importante aumentar os investimentos em pesquisas e estudos que visam o mapeamento detalhado das características hidrodinâmicas dos aquíferos e, para assim, estabelecer regras precisas para que a extração de suas águas ocorra de forma sustentável, evitando a superexploração. A ação significa extrair apenas das águas oriundas das reservas renováveis dos aquíferos, que serão repostas pelas recargas provenientes das infiltrações ocorridas naturalmente pela dinâmica do ciclo hidrológico. Para isso necessita-se estabelecer políticas de proteção e de preservação ambiental das áreas de recargas, evitando a impermeabilização e limitando o uso do solo, conforme o grau de vulnerabilidade à contaminação do local.

Por fim, a fiscalização intensiva dos volumes  extraídos e a verificação das conformidades com as regras estabelecidas nas outorgas. “O monitoramento do nível dinâmico dos aquíferos vai permitir o acompanhamento para que o uso das águas subterrâneas se estendam indefinidamente nos moldes atuais”, finaliza o engenheiro civil e professor da UFG, José Vicente de Araújo, em entrevista exclusiva ao jornal