Jornal do Peninha

Opinião e informação

Canais oficiais de comunicação pública na mira da polarização política

Especialistas explicam impacto na democracia 

Ludymila Siqueira

Publicações nas redes sociais oficiais do governo federal dividiram opiniões dos brasileiros nos últimos dias. Ao abordarem temas relacionados a ações da atual gestão, as postagens, de certa forma, faziam referência, com tom de ironia, à operação da Polícia Federal (PF) que teve como alvo o vereador Carlos Bolsonaro, filho do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

A primeira postagem, que chegou a ser um dos assuntos mais comentados na Rede X (antigo Twitter), foi sobre o trabalho de combate à dengue. Com “toc, toc, toc”, o perfil do governo  orientou a população a receber os agentes comunitários para prevenir o avanço da doença. A frase lembra uma fala da ex-deputada Joice Hasselmann em 2022, que durante um discurso na Câmara dos Deputados simulou uma possível chegada da PF à casa de Jair Bolsonaro. 
Por um lado, o assunto foi abordado em tom de humor e ironia. Por outro, no entanto, a postagem foi observada como “arma política” por parte do governo brasileiro. A oposição chegou a encaminhar ofício à Procuradoria Geral da República (PGR) e ao Tribunal de Contas da União (TCU) para pedir apuração das postagens publicadas pela Secretaria de Comunicação do Governo (Secom) na página do governo brasileiro  A pasta, porém, nega que tenha utilizado os perfis sociais para fins políticos. 
Não é a primeira vez que perfis oficiais do governo federal fazem referência à oposição. Em 2023, conteúdos semelhantes foram publicados nas páginas. Com isso, discussões sobre a finalidade de uso de redes sociais por parte de gestões federais, estaduais e municipais ganharam força nos últimos anos. A ideia é que o tema seja ainda mais evidenciado em razão da chegada do período eleitoral. 
O advogado Hebert Valentim, especialista em Direito Público, observa que, nos últimos anos, há uma crescente utilização dos canais oficiais de comunicação como uma forma de “arma política” e palanque eleitoreiro. Segundo ele, o governo possui em sua essência uma abrangência plural, com isso, precisa ser imparcial e atender a toda a população. Sendo assim, as estratégias de comunicação não devem ser oportunistas, nem devem afrontar os pilares básicos de uma democracia, conforme pontua.

Especialista em Direito Público, o advogado Hebert Valentim explica sobre como o uso das redes sociais
em canais oficiais de comunicação dos governos podem afetar a democracia
(Foto: arquivo pessoal)
 
Em entrevista à reportagem do A Redação, Valentim explica que a veiculação de conteúdos ambíguos alimenta a base eleitoral e fomenta a polarização, o que, segundo ele, pode ser extremamente perigoso, já que pode ser usado como caminho para desqualificar adversários políticos através do aparato estatal, restando a real possibilidade de perseguição política. “Com a publicação, o Estado Brasileiro conclui diretamente pela imputação de culpa de Bolsonaro. Contudo, a realidade aponta para a fase investigatória”, relata.
 
O especialista enfatiza, ainda, que, além da fomentação da polarização, a utilização de tal estratégia também poderá afetar o princípio do devido processo legal, que pode,  inclusive, suprimir direitos essenciais como o da presunção de inocência. 
Especialista em Direito Público, o advogado Juberto Jubé compartilha do mesmo pensamento de Hebert Valentim. De acordo com o profissional, lamentavelmente, o uso inapropriado de redes sociais não tem sido exclusividade do governo federal. “Brasil afora identificamos governos estaduais e municipais utilizando essas mídias em afronta ao princípio da impessoalidade ou com desvio de finalidade”, pontua Jubé ao destacar que, de fato, deve-se separar o público do privado. “Aliás, não se admite, ainda que de modo subliminar, que uma propaganda institucional sirva para atacar adversários políticos”, defende. 

Especialista em Direito Público, o advogado Juberto Jubé explica sobre como o uso indevido
de perfis sociais oficiais dos governos pode impactar e reforçar a polarização política
(Foto: Letícia Coqueiro/A Redação)
Ainda conforme Jubé, o cenário político brasileiro, quando se trata de comunicação indevida ou até mesmo incitação à violência por meio de conteúdos digitais, está acirrado desde 2018.  “Chegamos ao ponto, segundo apurado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de ter sido instalada uma ABIN paralela no governo anterior. Ao que parece, com o fim de monitorar ilegalmente adversários políticos. Perto disso, o uso inapropriado de mídias sociais fica até menor. Precisamos voltar à normalidade. A tolerância deve andar de mãos dadas com a política. O ódio deve ser excluído do processo eleitoral. O debate ideológico não pode desbordar, jamais, para a violência. E o exemplo deve vir de cima. Nossos chefes de governo devem respeitar e exigir respeito às instituições democráticas”, ressalta em entrevista à reportagem do AR.
Instrumentalização do Poder Público
Hebert Valentim explica que, no âmbito jurídico, a utilização do aparato estatal, a exemplo de canais oficiais de comunicação, órgãos internos de fiscalização, política econômica e ministérios, para fins pessoais-eleitoreiros, configura-se por meio da Instrumentalização do Poder Público. “Neste caso, um governante se utiliza de todos os canais oficiais fornecidos pelo Estado Democrático de Direito para realizar propaganda pessoal de determinada classe, ideologia ou religião”, afirma ao AR.
O advogado ainda destaca que essa instrumentalização pode, além de fomentar a polarização, afrontar os princípios básicos que norteiam a administração pública, como a impessoalidade e supremacia do interesse público. “Porém, é importante lembrar que não é a primeira vez que o interesse político sobressai sob a ótica do dever público”,  salienta.
Entre outros pontos, Valentim cita que o uso dos canais oficiais para fins eleitoreiros não se restringe a um grupo. Ele lembra que a gestão anterior foi  acusada de utilizar a TV Brasil, emissora pública federal, para difundir ideais político-religiosos, onde foi veiculada uma videoconferência com representantes de igrejas católicas e evangélicas alinhadas ao governo.  “Frente a isso, verificamos que a instrumentalização do aparato público, independentemente da linha ideológica, se tornou uma política eleitoreira de autopropaganda e desqualificadora de adversários políticos”, arremata.
Redes sociais e democracia 
Mesmo que ainda não haja uma legislação específica para regras eleitorais nas redes sociais, o advogado Juberto Jubé considera que as eleições que estão por vir, incluindo a de outubro deste ano, devem ser desafiadoras no que se refere ao uso de ferramentas de comunicação. 
Para ele, o avanço tecnológico, como a inteligência artificial, é louvável. Contudo, deve haver regulamentação legal sobre o uso. As fake news, por exemplo, não são um fenômeno novo, mas tornaram-se uma força quase incontrolável devido à internet. 
“Para mim, o projeto de lei que tramita no Congresso sobre a regulamentação das redes sociais precisa avançar, com a responsabilização das plataformas digitais acerca de conteúdos extremistas e falsos, sob pena da democracia ser sequestrada pela barbárie”, defende Jubé.
Segundo o especialista em Direito Público, enquanto o Congresso se omite, o Tribunal Superior Eleitoral, por meio de resoluções, deverá coibir o máximo possível o uso maléfico dessas ferramentas tecnológicas, a fim de proteger a liberdade de escolha do eleitor.  “Esse vácuo legal interfere de modo nocivo na vida do eleitor”, conclui.