Para criticar a Ordem dos Advogados, presidente da República atacou líder da entidade e sua história familiar — pai de Santa Cruz é desaparecido político
Por Fernando Molica e Leonardo Lellis
O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e os representantes de todas as seccionais da entidade nos estados repudiaram a declaração de Jair Bolsonaro (PSL), que, para criticar a entidade, atacou o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, cujo pai, Fernando Santa Cruz, desapareceu durante a ditadura que governou o país entre 1964 e 1985. A Anistia Internacional também se manifestou em favor do dirigente de classe.
“Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade”, disse Bolsonaro. Em nota oficial, os advogados prestaram solidariedade a Santa Cruz e a todas as famílias de quem foi morto, torturado ou desaparecido ao longo da história, especialmente durante o regime militar.
“Todas as autoridades do país, inclusive o Senhor Presidente da República, devem obediência à Constituição Federal, que instituiu nosso país como Estado Democrático de Direito e tem entre seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, na qual se inclui o direito ao respeito da memória dos mortos. O cargo de mandatário da Chefia do Poder Executivo exige que seja exercido com equilíbrio e respeito aos valores constitucionais, sendo-lhe vedado atentar contra os direitos humanos, entre os quais os direitos políticos, individuais e sociais, bem assim contra o cumprimento das leis”, diz a nota.
Felipe Santa Cruz também manifestou-se em nota pessoal, encaminhada a amigos por sua conta no WhatsApp. Ele afirmou que o presidente Jair Bolsonaro desconhece a diferença entre público e privado e demonstrou, mais uma vez, “crueldade” e “falta de empatia”.
Em seu texto, o presidente da OAB — que tinha menos de 2 anos quando o pai foi detido — classificou de “inqualificáveis” as declarações de Bolsonaro: “É de se estranhar tal comportamento em um homem que se diz cristão. Lamentavelmente, temos um presidente que trata a perda de um pai como se fosse assunto corriqueiro — e debocha do assassinato de um jovem aos 26 anos”, escreveu.
Integrantes da organização Ação Popular Marxista Leninista (APML), Fernando e seu amigo Eduardo Collier Filho foram presos em 1974 por agentes da ditadura militar e nunca mais foram vistos — são considerados desaparecidos. Santa Cruz ressalta que sua avó morreu recentemente, aos 105 anos, sem saber como o filho foi assassinado. “Se o presidente sabe, por ‘vivência’, tanto sobre o presente caso quanto com relação aos de todos os demais ‘desaparecidos’, nossas famílias querem saber”, disse.
Segundo documentado pela Comissão Nacional da Verdade, Fernando não participou da luta armada. Em 2012, no livro Memórias de uma Guerra Suja, o ex-delegado do Dops Cláudio Guerra disse que o corpo foi incinerado no forno de uma usina de açúcar em Campos (RJ).
Além de repudiar a fala de Bolsonaro, o Instituto dos Advogados Brasileiros cobrou uma atitude do Ministério Público Federal. “Além da postura incompatível com o exercício do cargo de chefe de Estado, o presidente da República vem a público dizer que supõe ter conhecimento de fatos criminosos ocorridos, o que está por merecer esclarecimentos ao Ministério Público Federal, que não pode, em nome do estado de direito, ignorar tal pronunciamento.”
“Ainda que o presidente da República insista em alimentar a violência e ignorar os princípios republicanos de observância dos direitos da pessoa humana, desdenhando das atrocidades cometidas por conta da política fascista de segurança nacional perpetrada na ditadura militar, é inaceitável a agressão de índole pessoal ao presidente da OAB. A perda do pai em circunstâncias até hoje obscuras — mas que o presidente da República diz conhecer — deveria ser objeto de manifestação de respeito ao ser humano, ao cidadão Felipe Santa Cruz”, diz a entidade, em nota assinada por sua presidente, Rita Cortez.
Repercussão
A declaração de Bolsonaro repercutiu para além das entidades ligadas ao direito brasileiro. A Anistia Internacional, por meio de sua diretora executiva, Jurema Werneck, também condenou a fala do presidente: “É terrível que o filho de um desaparecido pelo regime militar tenha que ouvir do presidente do Brasil, que deveria ser o defensor máximo do respeito e da justiça no país, declarações tão duras. O Brasil deve assumir sua responsabilidade, e adotar todas as medidas necessárias para que casos como esses sejam levados à Justiça. O direito a memória, justiça, verdade e reparação das vitimas, sobreviventes e suas famílias deve ser defendido e promovido pelo Estado brasileiro e seus representantes”.
O deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS) cobrou um posicionamento do Supremo Tribunal Federal, do Ministério Público Federal e dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre. “Não é momento para silêncio nem covardia”, escreveu em sua conta no Twitter. O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), também solidarizou-se com Santa Cruz: “O terrível assassinato do pai de uma pessoa não deve servir de arma para politicagem. Quando o infrator da regra civilizacional básica é o presidente da República, mais grave é o fato. Nunca no Brasil se viu coisa igual”.
O governador paulista João Doria (PSDB) considerou a manifestação de Bolsonaro “inaceitável”. “Não posso silenciar diante desse fato. Eu sou filho de um deputado cassado pelo golpe de 1964. Eu vivi o exílio com meu pai, que perdeu quase tudo na vida em dez anos de exílio pela ditadura militar. É inaceitável que um presidente da República se manifeste da forma que se manifestou em relação ao pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. Foi uma declaração infeliz.”