Jornal do Peninha

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União homoafetiva no Brasil: 10 anos de conquistas e desafios

Foram mais de 70 mil registros na década

Fonte: AR

A união estável entre pessoas do mesmo sexo passou a ser reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal no dia 5 de maio de 2011. Posteriormente, o casamento civil também foi reconhecido. De lá pra cá, segundo a Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg), foram quase 74 mil oficializações de união de pessoas do mesmo sexo no País. 

São dez anos de avanços que precisam ser comemorados. Mas o Brasil, porém, continua sendo o país com os mais altos índices de violência contra esse público, que, infelizmente, segue sendo alvo de preconceito por uma parcela considerável da população. Segundo dados do SUS, uma pessoa LGBT é agredida a cada hora no Brasil. Dados do Grupo Gay da Bahia levantaram 237 assassinatos em 2020. A violência é maior entre as pessoas trans: foram 56 assassinatos só nos primeiros meses de 2021, segundo dados parciais do Grupo, e 175 durante todo ano de 2020.
 
Para a militância, é muito importante celebrar a conquista e o reconhecimento de alguns direitos, mas ainda há muito trabalho a ser feito, especialmente no combate à homofobia.
 
“Somos cerca de 15% da população brasileira. Pagamos impostos, somos cidadãos, temos sonhos, desejos, experiências. Este marco de 10 anos [reconhecimento da união homoafetiva] é muito importante porque muitas pessoas que não se dizem homofóbicas querem relegar o nosso afeto, o nosso amor, ao privado, e são homofóbicas quando fazem isso. Por que o nosso afeto e os casamentos entre pessoas do mesmo sexo afetam tanto? É preciso reafirmar que a orientação sexual e a identidade de gênero não são escolhas: são condições da vida humana”, afirma Fabrício Rosa, diretor da Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública LGBTQIA+ (Renosp-LGBTI+).
 
Ele avalia que o avanço é notável: as pessoas estão mais atentas e querem não ser homofóbicas, mas a homofobia é estrutural. “Por mais que a gente tente fugir [da homofobia], até nós mesmos da comunidade LGBTQIA+, às vezes acabamos enlaçadas por ela”, diz. Na questão do matrimônio, a homofobia é muito presente, conforme pontua Fabrício. “Muita gente acha que um casal gay vai influenciar uma criança a ser gay e isso é uma leitura errada. Primeiro, porque não há nada de errado em ser gay, e segundo porque ninguém influencia ninguém a ser gay”, acrescenta Fabrício.

Afeto como ato político
Para o superintendente LGBTQIA+ da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Políticas Afirmativas de Goiânia, Vitor Cadillac, apesar dos desafios e da insegurança, o marco deve ser celebrado, assim como a própria existência da Superintendência. Para ele, é uma forma de garantir direitos independentemente de quem governa.
 
“Conseguimos, mesmo diante de um mundo que passa por um avanço conservador, manter muitas das nossas políticas públicas porque foram regulamentadas e legisladas. Por isso é importante buscar e implementar estas políticas”, avalia.
 
Um dado interessante é que o número de registros civis disparou nos últimos três anos. O número de casamentos entre pessoas do mesmo sexo cresceu 61% apenas em 2018.
 
Tanto Fabrício quanto Vitor avaliam a disparada como sendo um reflexo direto da eleição presidencial. Na visão de ambos, “o casamento gay virou um ato político”. “O governo Bolsonaro se elegeu pela pauta da agressão à diversidade e aos nossos direitos. Ele faz questão de dizer que é homofóbico e em praticar atos de homofobia”, destaca Fabrício. “As pessoas querem fazer questão de registrar. Assim que houve a possibilidade da eleição de Bolsonaro, a comunidade estava receosa com a perda de direitos. Houve, então, uma corrida aos cartórios”, completa.
 
Cadillac, porém, não acredita na possibilidade de um retrocesso. “A democracia é um regime em constante aperfeiçoamento. O poder e as leis são forjados pelo interesse coletivo do povo. Estamos em um momento em que, de fato, precisamos estar atentos e na defesa dos nossos direitos. Se chegamos até aqui, não vamos retroceder. Vamos sempre avançar”.

Um dos casais que comemoram e se orgulham da união da pessoas do mesmo sexo é formado pela artista Fabíola Morais e pela pesquisadora de mercado Renata Coelho. “A gente decidiu se casar pela razão que as pessoas decidem se casar: tem um lado que é formal, de organização, de duas pessoas que resolvem ter a vida juntas, compartilhar patrimônio, as coisas, o dia a dia”, relata Fabíola. Porém, ela completa. “O que acelerou a decisão foi, sem dúvidas, o resultado das eleições presidenciais. A gente não sabia o que viria e percebeu que era preciso ter uma postura, marcar uma posição, que é uma coisa que fazemos até hoje, inclusive dando esta entrevista. Falar da vida pessoal em um contexto público é para marcar uma posição. Respeito a gente não exige, a gente conquista e exerce”, afirma. 


Renata Coelho e Fabíola Morais (Foto: acervo pessoal)

  
“Casamento sempre foi algo que eu quis, mas quando oficializamos, também oficializamos querer que a outra crescesse. Cresceu a vontade de querer ajudar a outra em todos os níveis de desenvolvimento: emocional, espiritual. Firmamos um compromisso”, revela Renata. “Acho que todo relacionamento traz crescimento, desafios, a luz e a sombra do outro. Vem com tudo: com a família, com os problemas. Parece que ao oficializar, abrimos uma outra janela para podermos nos comprometer. É uma parceria”.
 
O publicitário Marcus Maggioli e o professor Washington Júnior moram em cidades diferentes: um vive em Goiânia e o outro reside em Brasília. A distância, porém, não trouxe desgaste. “O casamento comprovou que, cada vez, mais precisamos estar juntos. Tudo melhorou e o status de estar casado proporcionou mais segurança e confiança”, avalia Júnior.
 
Marcus concorda. “Casar foi também uma forma de estarmos mais próximos. Poder casar-se com a pessoa com quem você quer compartilhar a vida é essencial, é um direito que foi negado a casais homoafetivos até pouco tempo atrás. Quer queira quer não, além de unir duas pessoas, o casamento homoafetivo é um ato político”.


Marcus Maggioli e Washington Júnior (Foto: acervo pessoal)
O que vem pela frente
Como próximo passo, Fabrício Rosa avalia que é necessário avançar no campo de combate à violência. “Precisamos, de fato, ter a coragem de estabelecer políticas públicas que discutam essas questões na sala de aula. Precisamos trabalhar a formação dos servidores de Segurança Pública, para que eles tratem essa comunidade com dignidade. Temos também que ter casas de acolhida, principalmente para atender os adolescentes que são expulsos de casa”, afirma ao destacar que essa triste realidade ainda é vista com frequências em lares de Goiás e de outros Estados. 
 
Cadillac informa que a gestão municipal em Goiânia está por dentro das demandas e que deve apresentar um plano de ação em junho, mas que algumas ações já estão em desenvolvimento. Uma delas é a Casa de Acolhida voltada ao público LGBT. “Já é um pedido antigo da comunidade. Temos casa de acolhida para idosos, para mulheres, por que no país que mais mata LGBT não teríamos uma casa de acolhida pra esse público?”.
 
A Secretaria também formou uma parceria com a UFG na construção de um curso voltado para Direitos Humanos e Políticas Públicas que será oferecido para os servidores da prefeitura, inclusive Guarda Civil Metropolitana e atendentes das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs). “Vamos oferecer o curso também para toda a sociedade. Com ele será possível construir redes de atuação nesses campos, inclusive da violência. A Polícia Militar de de Goiás será convidada para fazer esse curso com a gente. Isso é uma prioridade. A gente sabe que a abordagem policial de pessoas trans é muito complicada”, lamenta.
 
A primeira medida a ser implementada, porém, deverá ser um disque-denúncia, que é uma prioridade para a secretária de Direitos Humanos da prefeitura de Goiânia, Dra. Cristina Lopes.
 
Apesar das dificuldades, Fabíola Morais diz que prefere estar “neste campo de batalha” do que silenciada. “Ali na década de 1980, quando comecei a sair na rua e havia aquela frieza do que era conhecido, mas não mencionado, era muito difícil. Me sentia solitária”, completa a artista.