Um dos servidores recebeu quase R$ 1,5 milhão ao longo de 11 anos e disse ter como função entregar panfletos; último salário dele foi de R$ 17 mil, revelou a GloboNews. A defesa de Carlos Bolsonaro não quis comentar o assunto porque a investigação está sob sigilo.
Fonte: G1 Brasil
Onze servidores do gabinete do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos) investigados como supostos funcionários fantasmas na Câmara do Rio receberam um total de R$ 7 milhões, desde 2001.
O valor não foi atualizado pela inflação e consta em um ofício que está anexado à investigação do Ministério Público contra Carlos Bolsonaro por peculato – quando um funcionário público desvia dinheiro para uso próprio.
Os novos documentos foram obtidos com exclusividade pela GloboNews nesta sexta-feira (4).
Carlos Bolsonaro em foto postada por ele em redes sociais — Foto: Reprodução/Twitter/Carlos Bolsonaro
Transparência da Câmara
O site da Câmara não mostra quais funcionários trabalham nos gabinetes dos 51 vereadores. Só é possível ver uma lista com os nomes de todos os servidores, com um cargo que aparece em códigos.
O salário-base de cada um consta em outra tela, onde não é possível ver o nome dos servidores ou o detalhamento das gratificações de cada um. Também não é possível saber para quem o servidor trabalha.
Em nota, o departamento de pessoal da Câmara do Rio informou à GloboNews que todo servidor, ao ser efetivado, precisa entregar uma foto e fazer seu crachá. Entretanto, a própria Câmara reconhece que nem todos os funcionários fazem isso e admite que sequer fiscaliza se esses funcionários fizeram ou não seus crachás.
Quem são os supostos ‘fantasmas’
O servidor que recebeu o maior valor em salários foi Guilherme Hudson: quase R$ 1,5 milhão em 10 anos. Ele dirigia todos os dias até outra cidade para levar a esposa para estudar, num total de 5 horas de ida e volta.
O MP apura a que horas ele cumpria as obrigações como servidor. Em depoimento, ele disse que sua função era de assessoria jurídica e fazia análise da constitucionalidade de projetos de lei apresentados.
Ele disse também que acredita ter “trocado pouquíssimos e-mails” com o chefe Carlos Bolsonaro em 10 anos e que “não tem nenhum documento guardado” do tempo em que foi funcionário.
Guilherme Hudson assumiu o cargo de chefe de gabinete que antes era ocupado pela prima, Ana Cristina Siqueira Valle. Ela é ex-mulher do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Entre os 11 funcionários que tiveram os salários informados pela Câmara ao MP, Ana Cristina fica na quinta posição dos maiores valores recebidos, com um total de quase R$ 670 mil.
A estudante Ananda Hudson, que Guilherme Hudson levava todos os dias para faculdade, também fez parte do gabinete de Carlos Bolsonaro. Os salários dela somaram mais de R$ 117 mil em um ano e cinco meses.
Carlos Bolsonaro na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro — Foto: JN
R$ 1,5 milhão para entregar panfletos
A reportagem da GloboNews também mostrou o militar da reserva Edir Barbosa Goes, que ainda é assessor do vereador. Em depoimento, ele disse aos promotores que entregava informativos mensais e trimestrais na Zona Oeste do Rio sobre as atividades do vereador.
As entregas, de acordo com o depoimento, eram feitas de porta em porta e também em filas de bancos. Ele contou aos promotores que não tinha nenhum exemplar dos panfletos.
Para distribuir panfletos, Edir recebeu quase R$ 1,5 milhão ao longo de 11 anos. O último salário informado pela Câmara ao MP foi de R$ 17 mil, em maio do ano passado.
“Acho que até essa função que exerce seria desnecessária (…) Chega a ser um escárnio, uma provocação”, diz Gil Castello Branco, secretário-geral da Associação Contas Abertas.
Crachá
Desses 11 servidores, apenas 5 constam na lista de controle de entrega de crachá fornecida pela Câmara ao Ministério Público. O nome de quem retira a identificação é preenchido à mão pelo servidor. Alguns nomes são ilegíveis; em outros, consta uma rubrica ou assinatura.
Uma resolução da Mesa Diretora desobrigou servidores comissionados de comparecer à Câmara, mas todos devem ter seu crachá.
Idosa não sabe o próprio cargo
Diva da Cruz Martins não conhecia funcionários e panfletava para Carlos Bolsonaro
Os procuradores encontraram indícios de que a prática tenha se estabelecido já no primeiro mandato de Carlos Bolsonaro, em 2001.
No relatório, citam servidores de idade elevada que moram em outros municípios ou estados — o que inviabiliza o cumprimento das funções, segundo a investigação.
Uma das contratadas foi Diva da Cruz Martins, de 72 anos, moradora de Nova Iguaçu. Diva foi lotada entre 2003 e 2005 — ou seja, no primeiro e no segundo mandatos — no gabinete do vereador e recebia R$ 3 mil por mês.
“Eu não encontrava com ninguém. Eu ia lá e voltava, não sei nem quem trabalhava lá. Não sei nem quem era funcionário, quem não era”, disse.
Diva não soube dizer aos promotores qual era a denominação do seu cargo. Ela disse em depoimento que “seu trabalho” era “comparecer à Câmara de Vereadores uma vez por mês, buscar uns folhetos e distribuir às pessoas no Centro de Nova Iguaçu”.
Nova Iguaçu é um outro município do estado do Rio, embora os eleitores de Carlos Bolsonaro sejam da capital.
O que dizem os citados
A Globonews procurou a defesa de Carlos Bolsonaro, que não quis comentar o assunto porque a investigação está sob sigilo.
O advogado Jeferson Gomes, que defende Guilherme e Ananda Hudson, disse que todos os esclarecimentos necessários já foram prestados ao Ministério Público e que seus clientes jamais cometeram qualquer ato ilícito.
A Globonews já esteve na casa de Edir Góes, mas ele deixou claro que não se pronunciaria.
A defesa de Ana Cristina Valle diz o valor citado na reportagem diz respeito a vários funcionários que trabalharam por quase 20 anos no gabinete de Carlos Bolsonaro e que não há qualquer indício de que Ana Cristina tenha sido funcionária fantasma.
Em nota, a Câmara de Vereadores do Rio disse que, desde 2010, tem um portal da transparência para que qualquer cidadão tenha pleno acesso a todos os dados relativos à atividade parlamentar e que no portal também são divulgados a quantidade de servidores efetivos, comissionados e terceirizados, lista nominal de funcionários e salários.
A Câmara esclarece ainda que a Lei de Acesso à Informação deixa a cargo de cada poder a sua regulamentação e que casa estabelece que a divulgação dos vencimentos dos servidores se dê por meio de tabelas. Diz também que no portal da transparência, disponível no site da instituição, consta também valores das funções gratificadas ou cargo em comissão e verbas específicas, como adicionais e gratificações.
Por fim, a Câmara Municipal do Rio diz que reafirma “o compromisso com a publicidade e a transparência das informações, como princípio fundamental para o aprimoramento da democracia”.
A equipe de reportagem não conseguiu contato com os demais citados na reportagem.